Flerte fatal
Ando e tropeço nos meus pés, mas não sinto que arranhei os cotovelos. Os meus sentidos estão adormecidos, mas minha mente está alerta. Agonizo na calçada em plena madrugada. Grito e ninguém surge para me socorrer. Quando, finalmente, consigo me pôr em pé, caio novamente. Vejo um clarão e deduzo que é um farol. Minha visão está embaciada. O motorista do táxi (é um táxi) me ampara sem fazer perguntas. "Me leve pra casa, me banhe". Ele não me banha. Deixa-me em casa, estendido no sofá e vai embora. Amanhã ele vem receber seu pagamento. Fico estático no sofá por horas. Reajo àquela solidão e já posso me levantar e voltar a viver a minha embriaguez. Procuro uma garrafa de whisky nas minhas prateleiras. A dispensa está vazia; o meu estômago também. Eu estou vazio. O whisky não aparece, talvez Célia o tenha escondido. Ela sabe que o meu vício é mais forte que eu. Célia é uma secretária eficiente, cuida de mim. Preciso aumentar seu salário. Amanhã cuido disso. Onde esse whisky está? Whisky deveria fazer mais efeito. Não sinto o gosto do álcool, não fico fora de mim. Mas não posso ter nada forte ao meu alcance. O álcool está me ruindo. É o causador das minhas mazelas, é o capanga do diabo. Eu quero me desvencilhar desse terrível inimigo, mas não consigo. Eu preciso dele para enfrentar os meus dias. Negros dias. Achei o whisky. Quem o pôs nessa gaveta? Tomo o primeiro gole indiferente. Não desce quente, não arde a garganta, não pesa no estômago, ainda vazio. É água de outra cor. Acabo de lembrar que não tomei água hoje. Não tomo água há meses, desde que descobri que posso morrer a qualquer momento. É um desperdício tomar água pura, agá-dois-ó com sais. Tanta gente morrendo de sede em lugares, quentes ou frios. Então deixo a água para elas. Eu tenho água sem sais. Água na minha bebida alcoólica, e me satisfaz. Sou um homem adaptável às circunstâncias mais sórdidas. Sobreviveria comendo lixo. Os cachorros comem lixo e ainda estão vivos; não sou mais que isso, sou um cachorro, apenas maior e disforme. Não tenho amor por ninguém, não sou amado por ninguém. Só cultivo o mínimo de afeição por Célia, por ela cuidar de mim. Sinto que atrapalho. O telefone não toca há dois meses. Está servindo de adorno para a minha sala. E agora, me causa sofrimento. Olho para o telefone e lembro que ninguém me liga há dois meses. E se alguém tiver me ligado enquanto eu estava fora? Nunca saberei. Olho e sofro. Bebo, olho e sofro. Sei que sou alguém que não espera nada da vida. Nem ao menos tenho vida. Sou um bêbado sem porvir. Levanto cambaleando e sigo para o banheiro. Deixo o copo de whisky cair, não controlo meus movimentos. Ao olhar-me no espelho, deparo-me com minha imagem nada aprazível. Eu não quero ser assim. Mas sou. Lembro que escondi algo no meu quarto. Arrasto-me para lá. A cama parece aconchegante, e, nessas condições, eu não posso querer outra coisa além de aconchego. Eis que surge na minha frente a ferramenta que pode me tirar do desespero. Sem pensar duas vezes, seguro firme o revólver, o posiciono na boca do ouvido e aperto o gatilho.