quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Flerte fatal

Ando e tropeço nos meus pés, mas não sinto que arranhei os cotovelos. Os meus sentidos estão adormecidos, mas minha mente está alerta. Agonizo na calçada em plena madrugada. Grito e ninguém surge para me socorrer. Quando, finalmente, consigo me pôr em pé, caio novamente. Vejo um clarão e deduzo que é um farol. Minha visão está embaciada. O motorista do táxi (é um táxi) me ampara sem fazer perguntas. "Me leve pra casa, me banhe". Ele não me banha. Deixa-me em casa, estendido no sofá e vai embora. Amanhã ele vem receber seu pagamento. Fico estático no sofá por horas. Reajo àquela solidão e já posso me levantar e voltar a viver a minha embriaguez. Procuro uma garrafa de whisky nas minhas prateleiras. A dispensa está vazia; o meu estômago também. Eu estou vazio. O whisky não aparece, talvez Célia o tenha escondido. Ela sabe que o meu vício é mais forte que eu. Célia é uma secretária eficiente, cuida de mim. Preciso aumentar seu salário. Amanhã cuido disso. Onde esse whisky está? Whisky deveria fazer mais efeito. Não sinto o gosto do álcool, não fico fora de mim. Mas não posso ter nada forte ao meu alcance. O álcool está me ruindo. É o causador das minhas mazelas, é o capanga do diabo. Eu quero me desvencilhar desse terrível inimigo, mas não consigo. Eu preciso dele para enfrentar os meus dias. Negros dias. Achei o whisky. Quem o pôs nessa gaveta? Tomo o primeiro gole indiferente. Não desce quente, não arde a garganta, não pesa no estômago, ainda vazio. É água de outra cor. Acabo de lembrar que não tomei água hoje. Não tomo água há meses, desde que descobri que posso morrer a qualquer momento. É um desperdício tomar água pura, agá-dois-ó com sais. Tanta gente morrendo de sede em lugares, quentes ou frios. Então deixo a água para elas. Eu tenho água sem sais. Água na minha bebida alcoólica, e me satisfaz. Sou um homem adaptável às circunstâncias mais sórdidas. Sobreviveria comendo lixo. Os cachorros comem lixo e ainda estão vivos; não sou mais que isso, sou um cachorro, apenas maior e disforme. Não tenho amor por ninguém, não sou amado por ninguém. Só cultivo o mínimo de afeição por Célia, por ela cuidar de mim. Sinto que atrapalho. O telefone não toca há dois meses. Está servindo de adorno para a minha sala. E agora, me causa sofrimento. Olho para o telefone e lembro que ninguém me liga há dois meses. E se alguém tiver me ligado enquanto eu estava fora? Nunca saberei. Olho e sofro. Bebo, olho e sofro. Sei que sou alguém que não espera nada da vida. Nem ao menos tenho vida. Sou um bêbado sem porvir. Levanto cambaleando e sigo para o banheiro. Deixo o copo de whisky cair, não controlo meus movimentos. Ao olhar-me no espelho, deparo-me com minha imagem nada aprazível. Eu não quero ser assim. Mas sou. Lembro que escondi algo no meu quarto. Arrasto-me para lá. A cama parece aconchegante, e, nessas condições, eu não posso querer outra coisa além de aconchego. Eis que surge na minha frente a ferramenta que pode me tirar do desespero. Sem pensar duas vezes, seguro firme o revólver, o posiciono na boca do ouvido e aperto o gatilho.

15 comentários:

Leidson Germano disse...

Um texto dramático e profundo..

Rico nos detalhes...

E como sempre me surpreendendo.

Deixo um grande Beijo para minha escritora favorita.

Anônimo disse...

ultimamente tenho pensado em suicídio com muita frequencia. uma frequência maior que a normal. calma, pera lá. não pretendo me matar. quero apenas escrever sobre o famigerado. e eu ainda não consigo tecer um texto sobre o tema com tamanha eficiência como você o fez aqui *aplausos*.

esse blog teu é maravilhoso. muita coisa muito bem trabalhada. sempe que der, retornarei. e estou linkando a senhorita nas minhas leituras diárias.

keep up the good work! ;]
bjo

henrique

Unknown disse...

adoreeeeeeeeeeei, ju!
tá escrevendo muito bem!

beijoo

Anônimo disse...

Parabéns!
Como sempre muito bons seus contoos!
Você é demaiis :D
Continue assim... é uma grande escritora.
beijoos s2

Unknown disse...

Este blog não está sendo "favoritado" porque ela e minha Amiga, mas sim, porque ela é uma excelente escritora.
Um texto envolvente desde de o incio e rico nos detalhes. Que me deixou curioso para saber que ia ser o seu final. Triste final.
;D

Um Forte Abraço!

Anônimo disse...

Tá legal o texto... sendo q num tem nada haver comigo ^^

Anônimo disse...

Muito bom. Forte, detalhado, de impacto. Gostei mesmo. Parabéns.

Gabriela Gomes disse...

Imagina se o deixasse fora de si.
Tomara que a vida seja mesmo, brincadeira.

:)

CLARIDÃO disse...

o efeito do efeito do lisergico;

alineaimee disse...

o texto é bom, bem narrado e desvela bem o vazio do personagem.
obrigada pela visita ;)

Rebeca Ribeiro disse...

Olá! Amei o texto. Profundo, intenso, e levemente desesperador. E acho fantástico mulheres escreverem com "eu lírico" masculino. Gostei mesmo dos seus textos.

Uma outra coisa: Você curte "O Teatro Mágico"? Vi uma frase de uma música deles ali na sua side bar...

E, por fim: você estuda comigo? Vi um comentário do Henrique, que é lá da faculdade... Se sim, eu conheço vc pessoalmente?

Abraços.
Rebeca

PS: vc está no meu leitor de feeds a partir de hoje.

- disse...

aeeeeeeeeee, ju!

Anônimo disse...

Adoreiiiii Juh, minina você escreve muiiiiito bem, adorei esse texto, profundo...
Parabéns :D
;*

Anônimo disse...

Muito bom! Aplausos pra vc! Muito bom mesmo!

Esses macauenses são fantásticos!
hahahaha

Unknown disse...

Muito bom juh! Gostei muito, principalmente de sua escrita altamente madura! apesar de mim não gosta muito de de ler livros e literatura, Mais do seus textos eu gosto e admiro!
parabéns ;D
;**